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Vigiar e "Curar": A Mecânica do Controle em But I’m a Cheerleader

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    CTRL POP
  • 14 de out.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 14 de out.

Por Eshiley Lislaine

Foto reprodução: Megan Bloomfield (Natasha Lyonne)
Foto reprodução: Megan Bloomfield (Natasha Lyonne)

Já imaginou ser forçado a se tornar alguém que você não é, sob a justificativa de que isso vai te "corrigir"? É exatamente esse o ponto de partida de But I’m a Cheerleader (1999), filme dirigido por Jamie Babbit. Megan Bloomfield (Natasha Lyonne) tem a vida de "sonho adolescente americano": ela é uma adolescente aparentemente perfeita, líder de torcida, filha única de uma família tradicional e namorada do garoto popular. Mas ela não era realmente satisfeita. A maneira como via as mulheres e se sentia em relação ao seu namorado — a falta de atração — não era o "normal". Sua família e amigos, identificando esse comportamento, decidem intervir, enviando Megan para o acampamento de "cura gay" chamado True Directions, uma instituição que "corrige" jovens "desviantes" e os transforma em cidadãos heterossexuais, padrão e adequados.


Esse acampamento funciona como um microcosmo do controle social. O filme expõe a tentativa de moldar a orientação sexual reforçando estereótipos de gênero. Lá, meninos e meninas são submetidos a uma caricatura grotesca da heteronormatividade: as garotas vestem uniformes cor-de-rosa e aprendem tarefas domésticas, como cozinhar, limpar, cuidar da casa e dos filhos, enquanto os meninos, de azul, são treinados para ser viris, rudes, provedores, cortando lenha ou consertando carros. Cada gesto fora desse padrão rígido é vigiado, avaliado e "corrigido". O exagero torna explícita a artificialidade das normas de gênero, transformando em comédia o que, na vida real, é uma forma brutal de repressão. Além disso, há uma crítica à sociedade que se preocupa mais em manter as aparências e encaixar as pessoas em um padrão do que em permitir que se expressem de maneira genuína.


A estética e a repressão

Foto reprodução: Filme But I’m a Cheerleader (1999)
Foto reprodução: Filme But I’m a Cheerleader (1999)

A estética vibrante, com cenários em rosa e azul, móveis artificiais e roupas plastificadas, expõe a natureza forçada da heteronormatividade. Nada ali parece natural; tudo é encenação. Esse recurso visual reforça a crítica: se os papéis de gênero e sexualidade precisam ser ensinados de forma tão artificial, talvez nunca tenham sido naturais.

A sátira retrata como as instituições, sejam famílias, escolas ou terapias de conversão, tentam controlar os desejos e comportamentos, impondo conformidade em nome de uma "normalidade". A proposta de "cura" do True Directions não é apenas absurda, mas violenta, pois nega a possibilidade de autenticidade e obriga os jovens a performarem papéis que não correspondem ao que sentem.


Os jovens passam por um programa de cinco passos. Se concluírem todos com excelência, ganham o certificado de "hétero". O primeiro passo é a Admissão, na qual os adolescentes são forçados a reconhecer que são homossexuais. A protagonista, por exemplo, tem dificuldade de reconhecer-se como lésbica, já que não via nada de errado com a forma como enxergava as mulheres ou agia. "Eu não sou pervertida! Eu tenho boas notas. Eu vou à igreja. Eu sou uma líder de torcida!", ela repete incansavelmente, tentando explicar que, com essas características, seria impossível ser homossexual. Afinal, na teoria, ela se encaixava nos padrões de gênero.


O segundo passo é a Identificação, em que cada participante deve analisar quais comportamentos revelam sua homossexualidade. Aqui entram músicas, esportes e roupas. A personagem Jan afirma em uma das reuniões: "Eu nunca fui gay". Ao ser ridicularizada pelo instrutor, que diz "Olhe para você mesma..." referindo-se às roupas, ela rebate: "Todos pensam que eu sou sapatão porque eu uso calças folgadas, jogo softbol e sou menos bonita que as outras garotas, mas isso não me faz gay". Por ser uma mulher que não performava a feminilidade, ela era lida com homossexual e também deveria ser "curada". O terceiro passo é a Desmistificação, que busca encontrar as supostas causas de cada homossexualidade. Essa etapa satiriza teorias antigas e preconceituosas que tentavam explicar a orientação sexual como resultado de traumas ou falhas na educação dos pais.


O quarto passo é o Tratamento,  na qual são atividades práticas que reforçam os papéis de gêneros, como dito anteriormente. Por fim, o quinto passo é a Graduação, nessa etapa ocorre a encenação de relacionamento afetivo e sexual com pessoas do sexo oposto, para convencer os instrutores que abandonaram seus desejos.


Conexões com o controle social

"The Century of the Self "(2002), por Adam Curtis

Esse mecanismo de controle ligado à repressão dos desejos se relaciona com a lógica apresentada no documentário de Adam Curtis, The Century of the Self, especialmente na terceira parte: There is a Policeman Inside All Our Heads; He Must Be Destroyed. O documentário mostra como no pós-Segunda Guerra Mundial, o medo do "inimigo interno",  aquilo que traz o pior do ser humano e gera o mal na sociedade,  fez com que a psicanálise freudiana fosse aplicada. Anna Freud, filha de Sigmund Freud, estabeleceu a necessidade de fortalecer o ego e a conformidade para que as pessoas se tornassem mais estáveis, previsíveis e adaptáveis, criando um sujeito padronizado e útil para sustentar a democracia liberal e o capitalismo.


A lógica por trás do True Directions repete esse padrão: criar jovens conformados com a realidade e suas normas a ponto de não expressarem sua sexualidade. Eles são treinados para se vigiar, se culpar e detectar em si mesmos os sinais de "desvio". O ato de se autovigiar é o que no documentário é chamado de "o policial na cabeça", a internalização da repressão. Quando Megan e os outros personagens tentam convencer a si mesmos de que precisam mudar e que serão "normais" se se esforçarem o suficiente, eles colocam essa vigilância psíquica em ação. Há a Mary Brown, diretora do acampamento, que os vigia, mas eles mesmos assumem essa função tanto para si, como a personagem Sinead, que se dá choques em si para tentar repreender o desejo. O próprio indivíduo passa a censurar seus desejos.


A resistência e o triunfo da autenticidade

Foto reprodução: Beijo entre Graham e Megan
Foto reprodução: Beijo entre Graham e Megan

No entanto, no filme, essa tentativa de controle é falha. Megan e os outros jovens continuam a sentir atração por quem realmente desejam, escapam para momentos de pegação, vão a boates gays clandestinas e constroem laços afetivos. O desejo insiste em existir mesmo sob vigilância. Nesse aspecto, o filme aborda os opositores ao pensamento de Anna Freud. Nos anos 1960, surgiram movimentos contrários à abordagem freudiana, questionando a ideia de que reprimir desejos internos tornava o indivíduo saudável. Filósofos como Herbert Marcuse argumentavam que a repressão era a verdadeira fonte de infelicidade e perigo, e não os impulsos inconscientes em si. E Babbit mostra isso na tela: a autenticidade é resistente e o "eu" encontra sempre uma forma de se afirmar.


Megan, que inicialmente acreditava no discurso do acampamento e tentava se convencer de que poderia mudar, se vê, ao longo da narrativa, descobrindo a impossibilidade dessa transformação forçada e reconhecendo sua verdadeira identidade. Seu romance com Graham (Clea DuVall), outra jovem enviada ao True Directions, simboliza a vitória da autenticidade sobre a conformidade.


A sátira também explora como a sociedade "vende" o conceito de conformidade como algo desejável. No True Directions, a receita para a felicidade é: "se você se adequar, será aceito, amado e feliz". Essa é a mesma lógica do "ego plastificado", em que os sujeitos acreditam que escolhem livremente, mas, na verdade, seguem regras impostas externamente. A felicidade, então, está condicionada a regras que não se baseiam na subjetividade de cada ser, mas na realidade das massas.


O tom cômico do filme não diminui sua força política; ao contrário, mostra que o poder de moldar o desejo humano é ridículo quando confrontado com a natureza real do desejo. Megan, Graham e os outros jovens desafiam as regras, riem das imposições e, ao final, rompem com a lógica repressiva.


Foto Reprodução: Megan se declarando oara Graham
Foto Reprodução: Megan se declarando oara Graham

But I’m a Cheerleader, em diálogo com The Century of the Self, mostra que a repressão e a conformidade não são apenas questões individuais, mas mecanismos profundamente enraizados nas estruturas sociais. Enquanto Curtis evidencia como a psicanálise foi usada para criar sujeitos dóceis no pós-guerra, Babbit revela, de forma satírica, esse mesmo processo atuando no campo dos afetos e desejos. Se em The Century of the Self a crítica culmina na constatação de que a emancipação foi capturada pelo mercado, em But I’m a Cheerleader vemos uma aposta radical: a autenticidade é inegociável e, quando afirmada coletivamente, pode abrir fissuras nas estruturas que nos domesticam.


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